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Do xamanismo a globalização

O xamanismo é reconhecido como o conjunto de sabedorias, práticas e procedimentos de cunhos espiritual, social e mágico praticados pelas primeiras tribos nômades humanas no período paleolítico. Este caminho ancestral sempre se colocou como ponte entre a Natureza, considerada como uma entidade completa em si e dotada de presença e atuação sobre o mundo dos seres humanos e os seus negócios e interesses que deveriam, por sua vez, sempre levar em conta as relações e influências deste mundo supra-humano. Ao indivíduo dotado de capacidades e conhecimentos para tal, que passou por um treinamento iniciático competente caberia o papel de Xamã, que mais tarde irá se desenvolver na figura do sacerdote espiritual.

Podemos citar entre outras características do universo xamânico: o culto aos antepassados, o animismo, a visão das relações ecológicas entre as necessidades do grupo social e do meio que o circunda, uma conceituação mágica do mundo, onde a presença de entidades super-humanas (fenômenos naturais, arquétipos e deuses) dotadas de poderes com as quais se poderiam estabelecer algum tipo de comércio e acordo e, mais notadamente, o papel de responsabilidade e apaziguamento que o ser humano tem de assumir frente às suas ações no meio ambiente.

Se de um lado esta concepção guiou a uma vida mais harmoniosa no meio social, há de se considerar que ela, conduzida aos seus extremos, principalmente como instrumento de dominação social pelos clãs político-religiosos, propiciou exageros e um processo de aprisionamento das pessoas dentro do mapa de realidade dos rituais e processos de conexão com entes de poder cada vez mais exigentes e vingativos. Assim temos a superstição, que é o ato realizado meramente por medo e apego a uma tradição que nem sempre se justifica.

O surgimento das religiões representou um desenvolvimento das mitologias naturais xamanisticas em direção a uma estruturação de maior complexidade e significados. Agora os antepassados tornam-se antigos deuses, as forças da natureza sofrem um processo de antropomorfização e o mito irá estabelecer a trajetória espiritual e mística de um dado grupo social em processo de organização. Entretanto isso também representou um rompimento nos laços que ligavam cada ser humano com o mundo espiritual xamânico, já que agora a prática religiosa se torna privilégio de uma classe sacerdotal do culto e o indivíduo deixa de ser responsabilizado pela manutenção da ordem no universo.

O culto, o ato religioso, a expressão teológica assumem este papel e o indivíduo perde a dimensão da sua responsabilidade pessoal frente aos seus atos e ao mundo natural. Ele torna-se mero espectador e participante secundário dentro do processo. Igualmente o desenvolvimento das idéias religiosas, o surgimento das primeiras civilizações agrárias, o desenvolvimento da linguagem, a necessidade da divisão do trabalho levam ao fim do estilo de vida nômade, com os seus comemorativos xamânicos e o progressivo desenvolvimento de uma vida social, urbanizada, complexada, ritualizada e, fundamentalmente, voltada ao conceito da superioridade do ser humano frente a Natureza. Com isto o mundo natural deixa de ser um sócio e co-participante que necessariamente deveria ser respeitado e levado em conta em todas as empreitadas humanas e passa ser apenas um repositório de recursos, matérias primas que podem ser utilizadas de forma indiscriminada pelo grupo social. Entretanto, antigas atitudes mágicas e velhas superstições alicerçadas no xamanismo irão permanecer até os dias de hoje, algumas cooptadas pelas religiões consolidadas, outras mantidas a parte do processo de desenvolvimento sócio-religioso, vindo a constituir os elementos de uma tradição antiga, subterrânea, de caráter pessoal, iniciático e mágico que sobrevive até os dias atuais sob diversas formas: magia, druidismo, feitiçaria, cultos afro, celtas e outros.

O desenvolvimento posterior do processo sócio-religioso culminou no surgimento da mentalidade judaico-cristã no Ocidente e no eclipsamento, mas não erradicação, do pensamento xamânico. As consequências de tal postura caminharam para uma visão egocêntrica e antropocêntrica e numa ação de utilização desregrada dos recursos ambientais que acabou por conduzir aos desastres ambientais tão comuns na atualidade. Da mesma maneira, esta mesma representação do mundo está conduzindo a uma deterioração das relações sociais e do trabalho, num contexto ainda mais rápido e desumano de injustiças sociais e agressões aos direitos humanos essenciais numa escala nunca antes vista na história. O fenômeno da globalização, com o seu enfoque restrito à produtividade e lucro não importando que custos e consequências representem, neste caso, um processo de distanciamento do ser humano com o seu meio ambiente e social circundantes levando a uma perversão extrema, o defeito agora se torna qualidade desejável.

Com o passar do tempo, os espaços e oportunidades para a realização pessoal e econômica passaram a ser disputados por um contingente cada vez maior de solicitantes, isto conduziu a um processo de empobrecimento e elitização, à medida que as necessidades específicas das diversas profissões começaram a tornar-se mais e mais especializadas, exigindo um investimento caro e demorado na formação do trabalhador. Em paralelo, as camadas mais carentes da população passam a receber cada vez menos atenção e com isto instaura-se um processo de deteriorização e degradação dos costumes (violência, uso de drogas, prostituição, gangues, banditismo, etc.) e do meio ambiente (sujeira, grafitagem, invasões, depredações, etc).

Massas de pessoas, que agora vivem em ambientes urbanos desprovidos de serviços e recursos para fornecer uma qualidade de vida aceitável agora enfrentam o problema da dessocialização, com o desemprego, o aumento de custos dos meios de vida básicos (alimento, medicamento, residência, educação, transporte, lazer, etc.), falta de educação especializada, recolocação, a ineficiência de uma política de controle de natalidade e, presentemente, a recusa do poder público em assumir e desempenhar de forma correta as suas responsabilidades sociais conduzem a um caos que não somente retira a dignidade de uma parcela importante de pessoas, mas que também delas retira a esperança de alguma melhoria a curto e médio prazo. A longo prazo, apenas o alívio da morte.

Como resposta a isto, podemos citar o rápido desenvolvimento das religiões de caráter fundamentalista em todo o mundo, como atenuante psicológica e mesmo, como revanchismo frente a uma situação que passou a valorizar excessivamente o aspecto material das coisas.

Todavia, milhares de pessoas procuram resgatar o Elo Perdido com a Mãe Terra, restabelecendo seu próprio equilíbrio. As práticas xamânicas estão retornando hoje como autêntica força viva, em meios sofisticados como o das terapias alternativas contemporâneas, exercidas por indivíduos que podemos nomear de xamãs urbanos. Esta ação do xamanismo urbano resgata a relação sagrada do homem/mulher com o planeta, e através disto o reconhecimento que todos fazemos parte da Família Universal e, que tudo está interligado. Sendo assim, o praticante passa a compreender que o espírito essencial habita dentro dele, na natureza e em todos os seres. Fazendo com que aprendamos mais sobre nós mesmos e como se relacionar com a Mãe Terra e o Universo.

Wagner Frota, “Jaguar Dourado” (Xamanista e membro-fundador do Clã Lobos do Cerrado).