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Adaptações e criações de práticas no Caminho Xamânico

 

A prática xamânica é encontrada em todas as partes do mundo, da Sibéria até a Patagônia, do Tibete até as Américas, da Escandinávia até África e a Oceania. Independetemente de estas culturas serem separadas por continentes e oceanos, seus conjuntos de práticas e técnicas são semelhantes e apesar de haver pequenas diferenças nas adaptações que são feitas de acordo com a cultura de cada uma delas, elas apresentam o mesmo conteúdo mágico, espiritual e simbólico.

Segundo Marcel de Lima Santos no seu livro “Xamanismo: a palavra que cura” (p. 70):

O fenômeno do xamanismo tem sido, acima de tudo, um conjunto de práticas em constante transformação, que tem mostrado um grande senso de adaptabilidade, em qualquer tipo de encontro multicultural no qual tenha se envolvido. Como o próprio xamã, que frequentemente muda sua voz, alça um voo mágico pelo ar, ou até desloca o curso da natureza, de acordo com os requerimentos de determinado ritual, o xamanismo experimentou uma série de adaptações para se manter vivo.

Um aspecto do Xamanismo permaneceu consistente através de todas essas mudanças, o xamã continuou a acessar estados alternativos para atender às necessidades do povo. Como as necessidades da comunidade mudaram, as questões do xamã também e a orientação dos espíritos aliados foi alterada. No entanto, a tecnologia do xamã, a entrada em Estados Alternativos de Consciência (EAC) para fazer perguntas e receber respostas, manteve-se constante. Por exemplo, os xamãs continuam a realizar o voo extático para recuperar almas perdidas, embora as razões e os sintomas da perda da alma tenham mudado ao longo do tempo.

As necessidades humanas e as formas correspondentes do Xamanismo mudaram desde as paredes da caverna de Lascaux foram pintadas. Contudo, a entrada do xamã em estados de transe para atender às necessidades das pessoas tem-se mantido constante. Há uma razão para os nossos antepassados se preocuparem em pintar e esculpir xamãs em pedra. Provavelmente isso tenha sido realizado porque o Xamanismo realmente funciona. Permitindo que nossos ancestrais sobrevivessem, se adaptassem e prosperassem. E quiçá fosse mais do que a sobrevivência que inspirou sua arte. Talvez a intenção do artista para gravar as técnicas de êxtase, tenha sido porque os seres humanos têm uma necessidade básica de entrar em contato com o sagrado. E as pinturas rupestres foram criadas para nos lembrar de como voltar para casa.

Diante do exposto podemos dizer que antes de nascerem os deuses e, os cultos serem celebrados e organizados, o sobrenatural era percebido como um poder tremendo e fascinante sem rosto nem forma. Suas manifestações eram o raio e o trovão, a altivez das feras, o sol e o furacão, cada amanhecer e a primavera que reveste de flores os despojos do inverno. Naquelas épocas remotas, a difusão do Xamanismo era planetária. E o processo histórico não acabou com ele. Não a grupo nômade ou semi-nômade de caçadores-coletores que não conte com uma mulher ou homem sagrado que ao mesmo tempo é um vidente capaz de ver o desconhecido. Este é o xamã, cuja função é controlar o incontrolável, transformar o sagrado aterrador em uma força terapêutica, buscar almas perdidas dos enfermos subindo até as estrelas por meio de cordas mágicas, cavalgando o arco-íris, ou viajando até a terra dos mortos.

O Xamanismo existiu na Europa arcaica; Orfeu era um xamã, como Dionísio e Odin. No Tibet, Nepal, Butão, Mongólia o Budismo não pode desenraizar o Xamanismo e teve que conviver com ele, aceitando e readaptando algumas de suas práticas rituais e ascéticas. No Xintô japonês a estrutura xamânica é transparente. Até o intransigente Islã incorporou algumas técnicas xamânicas para o transe transformando-as em suportes místicos, como no caso da dança dos Derviches da Turquia, Egito e Sudão.

Quando da chegada dos europeus as Américas, o Xamanismo estava presente desde as culturas dos esquimós, passando pelas planícies norte-americanas, a Amazônia, Andes, até a Terra do Fogo onde a machi (xamã mapuche) ainda executa antigas práticas autóctones com rituais parecidos ao dos mongóis: uma misteriosa consequência casual que interconeta, como fio sutil, o Xamanismo no tempo e espaço.

Os símbolos, espíritos e histórias trazidas no transe extático é único e autêntico em cada ritual xamânico de cura. Embora um xamã adapte as suas interpretações do mundo invisível para as expectativas da comunidade, essas não definem o que ele encontra no mundo invisível. Não basta o xamã ter visões e entrar em Estado Xamânico de Consciência Ampliado (EXCA), ele deve ser capaz de interpretar os padrões de energia encontrados no mundo dos espíritos e dar-lhes forma que proporciona a cura eficaz ou a tarefa a ser realizada em benefício da comunidade. O sistema simbólico utilizado pelo xamã para expressar a experiência do EXCA é crucial para o contato com o “divino” a ser traduzido para o público. Os símbolos devem ter significado e poder no contexto da cura, mas eles também devem ser precisos. Os símbolos, espíritos e histórias que emergem do transe extático são padrões coerentes de fluxo energético no grande mar que é o mundo invisível.

Em nossos estudos descobrimos e podemos afirmar que o estilo de vida do xamã é quase tão antigo como a própria consciência humana, e que a prática do xamanismo tem permanecido vital, adaptando-se ao modo de vida de todas as culturas do mundo.

Infelizmente, com o advento do movimento New Age alguns nativos e esotéricos passaram a realizar as cerimônias destes povos originários para os ocidentais, visando o lucro, como também passaram a vender a parafernália xamânica sem nenhum critério esquecendo que essas praticas espirituais são voltadas para o bem da tribo. Ritos e cerimônias estão atualmente sendo adaptadas para os não-índios, tornando-as mas “apetitosas” para buscadores incautos. Infelizmente, em todos os caminhos espirituais iremos encontrar uma parcela de indivíduos que buscam manter um contato com a essência profunda e transcendente dos ensinamentos, e de outras pessoas que repetem a forma sem entender o conteúdo; ou seja; que imitam fórmulas sem operar com a verdadeira essência do que é realmente acessível.

Hoje ao acessarmos a internet ou ao abrir uma revista especializada em esoterismo, encontramos cursos xamânicos de final de semana em que muitos do que dali saem, acreditam que se tornaram xamãs, o que é uma tremenda falácia. O pior de tudo, é que nesses workshops também são oferecidos iniciações de técnicas de cura xamânicas que não existem, mas foram criadas por espertos ocidentais e alguns nativos dos povos xamânicos, aproveitando-se deste nicho comercial que é o Xamanismo hoje em dia. Dentre esses cursos da moda, gostaria de falar sobre duas criações ocidentais, que na verdade se analisarmos profundamente não são técnicas xamânicas, são eles: o Reiki Xamânico e o Ñusta Karpay.

O tal do Reiki Xamânico, recebe uma série de nomes como Reiki Ama-Deus, Ancestral, Kahuna, Maheo, da Deusa, etc. O Ama-Deus, por exemplo, é um sistema de símbolos “criados” por Alberto Costa Águas, supostamente de origem guarani, e que foi patenteado nos Estados Unidos. O mesmo ocorreu com o Maheo Reiki que dizem ser uma espécie de prática realizada pelos xamãs cheyennes. Porém nenhum cheyenne, guarani, e de outras comunidades xamânicas reconhecem os símbolos empregados nestas “técnicas de cura”. No nosso modo de ver, todos os reikis ditos xamânicos são uma deturpação do verdadeiro reiki criado pelo Sensei Mikao Usui, e das práticas espirituais dos povos originários que seus criadores dizem ser originados. Só para exemplificar, os praticantes do Reiki Ama-Deus alegam tratar-se de um sistema de cura de mais de 13 mil anos, mas a etnia Guarani não tem essa idade. Seus ancestrais chegaram ao continente sul-americano bem depois disso, na melhor das hipóteses eles se diferenciaram como povo há uns 3 mil anos.

Analisando apostilas sobre esses reikis mencionados acima, notamos que sem dúvida nenhuma, há uma apropriação da cultura destes povos, mas não do seu conhecimento profundo. Tratam-se de releituras ocidentais daquilo que antropólogos e etnólogos descreveram desse povo. Isso tudo misturada com orações, preces e rezas cristãs e do ocultismo ocidental traduzidas para as línguas nativas, fazendo parecer ser algo original dessas etnias. Enfim, trata-se de uma grande fantasia que pode ser útil e interessante para os ocidentais, mas que não tem nada originalmente xamânico nelas.

Outra iniciação xamânica que está na moda, tem origem no conhecimento e sabedoria da etnia Q’ero que habita a cordilheira continental dos Andes, e que são reconhecidos pelos antropólogos ocidentais como os herdeiros dos Inkas e intitulados pelos ocidentais como “Guardiões da Terra”. Os Paqos (xamãs Q’eros), envoltos em ponchos habilmente trabalhados de vermelhos, negros e laranjas de alpaca, são considerados os Guardiões da Sabedoria Andina e as compartilham na forma de Karpay, seus ritos iniciáticos. Como um estudante e aprendiz (estudante ao longo da vida), praticante e professor dessa linhagem, sou levado cada vez mais a me aprofundar por meio dos meus estudos na sabedoria ancestral dos Andes. Mas confesso que fico indignado ao ver esses conhecimentos sendo deturpados por indivíduos interessados em ganharem dinheiro em cima de pessoas que desconhecem verdadeiro legado deixado por essa Tradição Iniciática Andina.

No final do século passado, alguns símbolos cerimônias foram transformados numa série de ritos iniciáticos que deram o nome de Munay-Ki, o que rendeu uma série acusações aos seus criadores. Já no início deste século, foi criado uma série de transmissões energéticas e a batizaram com o nome de Ñusta Karpay. A origem desta iniciação é obscura para a maioria dos xamãs q’eros, mais uma pequena minoria (junto com alguns antropólogos e empresas que oferecem cursos esótericos) se aproveitaram da busca incessante de ocidentais por conhecimentos dos povos originários dos Andes, e começaram a realizar esses ritos iniciáticos. Os condutores do Ñusta Karpay, alegam que estão cumprindo uma profecia incaica de que é chegado o momento de compartilhar seus ritos ancestrais com os ocidentais, e para atingir esse propósito viram a necessidade de fortalecer primeiramente o nosso poder feminino interior e conexão com a Mãe Terra, para que possamos caminhar com beleza e graça pela vida.

Lamentavelmente, após anos de estudos investigativos entre os Q’eros, não identificamos esse rito de passagem nas suas aldeias. Mais uma vez, nos encontramos frente a frente com uma prática inventada com o intuito final de se aproveitar da inocência dos incautos para ganhar dinheiro. Ñusta Karpay traduzindo ao pé da letra, seria “Iniciação da Deusa”, no caso em questão seria das sete Deusas que estão ligadas aos nossos chakras (vórtices energéticos) que entre os andinos são conhecidos por ñawis. Ocorre que, nos Andes não existe sete chakras como é encontrado nas filosofias orientais, e sim cinco ñawis. Os facilitadores do Ñusta Karpay dizem que durante o processo deste rito, eles irão transmitir energias destas deidades andinas femininas aos participantes. Segundo eles, esses arquétipos andinos nos conectam ao sagrado feminino, carregando universalmente energias de despertar e de fortalecimento.

Neste rito iniciático, os futuros “iniciados” têm que adquirir umas pedras conhecidas pelos nomes chumpi kuyas (que são utilizadas em outra cerimônia energética dos xamãs Q’eros para tirar a energia densa do corpo de um paciente). No caso do Ñusta Karpay, essas pedras são as ferramentas de transmissão energética e o P’aqo Q’ero ou seu aprendiz é o transmissor da energia de cada Ñusta a um chakra correspondente no corpo, despertando uma semente de energia que irá fortalecer e equilibrar o iniciado. Antes de falarmos sobre cada uma das deidades presentes neste processo, seria bom lembrar que em qualquer tipo de iniciação andina a pessoa tem que estar em harmonia com tudo que o cerca, e no caso em questão, isso será realizado posteriormente (o que é muito estranho).

Na tradição espiritual andina, as Ñustas são as deusas e as energias femininas arquetípicas sagradas da natureza. Elas são as princesas originais da cosmologia andina, e são provenientes das grandes montanhas e lagos sagrados no Peru e Bolívia. Segundo os condutores desta iniciação elas são vistas da forma abaixo descrita:

1 – Mama Ocllo é filha do Pai Sol e da Mãe Terra e é originária do Lago Titicaca. Ela é a Deusa da Terra, Grande Mãe de todas as Deusas e também a Deusa da Sabedoria. A essência de Mama Ocllo é nos ancorar em nosso próprio centro, para encontrar nossa santidade interior. Mama Ocllo está conectada ao elemento Terra e ao primeiro chakra.

Este ritual cura seu poder feminino e restaura o equilíbrio. Este rito prepara o iniciado para receber as iniciações dos outros ritos, pois abre seus chakras e conecta cada um com uma espiral luminosa de luz, desde a raiz até a coroa. Durante o Ñusta Karpay, o iniciado recebe as “sementes de luz” em cada um de seus chakras. Estas sementes estão ligadas aos sete arquétipos através de sete pedras.

 

2 – Dona Mujia é o espírito da Água. A deusa sereia do segundo chakra. O espírito da água vive através de Dona Mujia e dos arquétipos da água em todo o mundo. A energia conectada a essa Deusa é sobre “deixar ir”. Essa iniciação nos ajuda a liberar os aspectos negativos do nosso ego e nos abre para o conceito de união altruísta com os outros. Este é um “ritual de floração”, as ferramentas usadas para esta iniciação são flores e água.

 

3 – Mama Simona é Deusa dos nossos antepassados. Ela conecta o iniciado com sua antiga linhagem feminina, suas ancestrais, conectando-se com suas raízes, voltando para casa para se encontrar. Este ritual permite que o iniciado se conecte não apenas com a Mãe Terra, mas também para alcançar uma conexão mais profunda consigo mesmo. Ela representa a Magia da Terra e está ligada ao terceiro chakra.

 

4 – Dona Teresa é a Deusa da Harmonia e Suavidade, ligada à nossa alma. Ela está associada com a montanha em forma coração perto do Apu Ausangate no Peru. Este rito abre o coração do iniciado, limpando-o para que você possa experimentar suas emoções puramente sem julgamento, e para que possa ver a vida com clareza através dos olhos do seu coração. Dona Teresa traz bênçãos de amor e perdão através do quarto chakra.

 

5 – Maria Sakapana é a Espiral do Vento, a Deusa da Comunicação. Este ritual convida o iniciado a liberar tudo que o impede de falar sua verdade, e de conhecer o seu Eu Verdadeiro. Este é um rito de limpeza profunda, em que o xamã limpa o quinto chakra do iniciado, fazendo com que ele se expresse profundamente.

 

6 – Huana Huaman Tikkla é a chamada de Deusa Visionária, a que estimula o terceiro olho e a intuição no sexto chakra. Nesta iniciação, o iniciado é conectado aos espíritos do Falcão, Águia, Harpia, Coruja e Condor, que irão ajudá-lo a entender a vida com clareza e com uma perspectiva mais elevada. Este ritual é uma transmissão energética para a abertura do seu terceiro olho, visão interior e o caminho para se conectar com o reino espiritual.

 

7 – Tomasa Huaman Tikkla é chamada da Deusa da Liberdade. Ela vive junto a sua irmã Huana Huaman Tikkla. Este é o rito da transformação, onde o xamã abre o chakra da coroa do iniciado, conectando-o ao seu Eu Verdadeiro, aos seres de luz e a integração de todos os Ñustas com as sete estrelas das Plêiades.

 

Como falamos anteriormente o Ñusta Karpay não faz parte das práticas xamânicas dos Q’eros, mas que está crescendo entre os novos p’aqos que oferecem os que os clientes ocidentais veem buscar. É possível que daqui a alguns anos, essa “iniciação” criada com elementos da espiritualidade oriental (como é o caso dos sete chakras) e da Nova Era, passe a fazer parte do conjunto de técnicas xamânicas desta etnia. Fato parecido ocorreu no final do século passado na aldeia Mbiguaçu, quando esse grupo adotou práticas que não são tradicionalmente dos guaranis – como o uso da ayahuasca e do temascal (de origem mexicana). Para isso, realizaram parceria com dois grupos não-guarani de origem xamânicas: O Fogo Sagrado de Itzachilatlan e Céu do Patriarca São José, do Santo Daime. Para a tribo Mbiguaçu, eles terem adotados algumas práticas não-guarani não os torna menos guarani, já que eles não negligenciam os costumes ancestrais guarani. Para os guaranis os acréscimos, se não contradizem seus costumes ancestrais, são bem-vindos e aceitos, inclusive, é prática comum em todas as aldeias que sempre incorporam costumes locais aos costumes ancestrais.

Como podemos ver, a prática xamânica é uma arte viva. As formas mudam, evoluem e se transformam. No entanto, as funções dentro das formas não mudaram ao longo do tempo ou entre culturas. É justamente essa consistência e capacidade de adaptação que faz com que o Xamanismo seja uma prática de cura até os dias de hoje.

Munay,

Wagner Frota