Universo Xamânico

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Percorrendo o Caminho

A Roda da Medicina, ou Roda Sagrada é uma guia. Apresenta os quatro passos para termos poder e conhecimento necessário para acessar as habilidades de nosso neocórtex. Cada direção tem um tema específico associado com isto. Na Roda da Medicina Andina-Amazônica, por exemplo, o Norte é o lugar da Serpente, o Caminho do Curandeiro. O trabalho aqui é livrar-se do passado. Livrando-se do passado do mesmo modo que a serpente livrou-se de sua pele. Para o xamã este é um ato de poder. Livramo-nos não só a dor, mas também a alegria que tivemos no passado. Ao livrarmo-nos do passado, reconheceremos e perdoaremos aqueles que nos prejudicaram e quem nós prejudicamos. A Psicologia tenta nos livrar do passado dissecando as experiências traumáticas de nossa vida. No xamanismo procuramos nos livrar de tudo que nos assombra do nosso passado. Estes fantasmas não são necessariamente as pessoas que morreram. Eles podem ser as pessoas que estão vivas que estão na nossa psique, e que continuam assombrando nosso presente.

A próxima direção é o Oeste, o Caminho do Guerreiro. O Oeste é representado pelo Jaguar, que simboliza a astúcia, cautela, e relaxamento total, e a habilidade para golpear instantaneamente. No Oeste vamos ao encontro da morte e damos um passo além do medo. E, ao nos defrontarmos com a morte e experimentaremos o vôo do espírito, identificamo-nos com o Eu imortal e transcendente, libertamo-nos das garras do medo e requisitamos uma vida de plenitude, porque a morte já não nos pode requisitar. O guerreiro espiritual não apenas se liberta para viver integralmente o presente, mas sabe que caminho tomar quando a morte vier, e ela também o reconhecerá.

É no Oeste que o corpo e o espírito, se separam. Isso significa morrer com consciência, de olhos abertos. Quando morremos com consciência, deixamos para trás o invólucro e nos identificamos com seu conteúdo. E isso é Deus, Hunab-Ku, força de vida, energia, chame-a como quiser. É a matéria de que são feitos os sonhos e o cosmos. É a maneira de deixar este mundo vivo. Enfim, enfrentamos o desconhecido, que tememos acima de tudo. Medo. Assim, os xamãs nascem duas vezes, uma da mulher, outra da Mãe Terra. Transcendemos o jogo das sombras, ao qual denominamos de realidade biológica, e nos identificamos com a força divina, descobrimos que somos “seres de luz”, de que poderemos morrer com consciência, morrer para carne e renascer no espírito, no espírito que reivindicamos e com o qual já tivemos contato. É na experiência da vida através da morte que nos tornamos guerreiros espirituais e nos identificamos com a força da vida.

A terceira direção na Roda da Medicina é o Sul, o Caminho da Sabedoria. É representado pelo Puma da Neve,  Dragão e/ou Beija-Flor. No Sul o xamã entende os funcionamentos do Céu e da Terra. De acordo com lenda, os ensinamentos de sabedoria que recebemos dos ancestrais nos dá o poder das forças da natureza e a habilidade para influenciar o curso de nossos destinos coletivos.

O Leste é a direção do Caminho do Visionário. Enfatiza o possível, não o provável, mas o possível. Seu animal é a Águia, e ensina para o xamã o uso da visão. Nos ensina a colocar o carro na frente dos bois e ver o que estamos tentando realizar antes de olhar as limitações. É um ato de criação, do tipo de futuro que nós queremos que nossos filhos herdem.

O eixo de Leste-Oeste é o eixo de compaixão e visão, e é o horizonte no qual o xamã trabalha. Tem acesso direto ao poder, mas é suave por compaixão.

Nas tradições xamânicas que eu fui treinado, o medo é o nosso grande inimigo. Procuramos aprender a o usar medo como um sistema de advertência ao invés de um mecanismo de resposta. Quando isto acontece, o centro do cérebro associado com resposta violenta é desembaraçado. Um dos ensinos chaves da tradição xamânica é que nós não podemos nos livrar do medo até que consigamos exorcizar a violência dentro de nós. O medo que vive dentro de nós é basicamente o medo da morte, mas nós não morremos de um golpe só. Nós morremos um pouco de cada vez. Assim, exorcizando o medo, nós exorcizamos a morte. Nós morreremos, mas não seremos reivindicado através da morte se formos reivindicado pela vida. No xamanismo, medo e violência são negações da vida. Eles são dois lados da mesma moeda. Uma coisa que eu aprendi dentro da minha caminhada é que a única coisa que nós precisamos mudar é nossa percepção.

Alguns acreditam que para a nossa percepção ser mudada é necessário a utilização de psicotrópicos, que tem um papel alucinógeno. No início do meu treinamento dentro do xamanismo, eu tomei a Ayahuasca, um psicotrópico muito poderoso. Não é o tipo de coisa que eu recomendo. A Ayahuasca nos leva além da morte para enfrentar tudo que nós sempre tememos. Não é uma experiência fácil. Eu não sabia no que eu estava embarcando quando eu comecei trabalhando com essa Planta-Mestra. Horrores pessoais e coletivos vieram em minha direção, e meu pior medo no momento era que eu não morreria. Eu fiquei aterrorizado na certeza de que continuaria vivendo vendo este pesadelo. Meu treinamento era aprender observar o terror e a beleza, não negar e nem me identificar com eles.

Eu penso que essas Plantas-Mestras são valiosas e poderosas quando usadas no contexto certo. Eu vi muito abuso de psicotrópicos, e não aconselho ninguém a trabalhar com elas, a menos que estejam trabalhando com um “Mestre”. Caso contrário, eu penso que é muito escapismo. Conheço diversas pessoas que têm visões místicas extraordinárias e comungam com o divino, mas as suas vidas são uma bagunça. Elas estão lutando para sobreviver fazendo algo que elas não gostam. As relações delas não estão sendo trabalhadas. Elas estão vivendo em adversidade. A utilização de psicotrópicos são um pseudo-conhecimento que imita, mas evita o tipo de conhecimento que um xamã verdadeiramente busca; é uma das maiores armadilhas no treinamento xamânico.

Quem conhece a minha história dentro do xamanismo, sabe que pertenço ao Clã Lobos do Cerrado e que fui iniciado no Sagrado Caminho do Xamanismo em Brasília, na minha querida Terra Vermelha, por um excelente “Mestre” que me mostrou o começo da trilha que eu teria que percorrer com os meus próprios passos, como eu fiz percorrendo diversas tradições e sendo iniciado em algumas delas. Ao criar um site sobre xamanismo, baseado nos meus estudos no caminho, começou a ocorrer algo que não estava nos meus planos; ou seja; dezenas de pessoas vieram até a mim querendo ser meus discípulos. Tive que administrar esta situação dizendo que eu poderia auxiliar estas pessoas, mas que eu estaria longe de ser um “Mestre”.

Eu necessariamente não aconselho as pessoas que procurem um mestre xamã. Eu os encorajo a caminharem pela natureza e aprender com a natureza. Há muitos grandes professores ao nosso redor, pode ser um nativo ou não. Mas acima de tudo, nós temos que nos conhecer. Sun Tzu fala sobre isso no livro A Arte da Guerra: “Se você conhece você, mas não conhece seus inimigos, você será vitorioso pela metade em suas batalhas, mas se você conhece o seu inimigo, você será vitorioso em todas suas batalhas”. Bem, se você não sabe quem é você e você não conhece seu adversário no sentido xamânico, então você perderá todas suas batalhas.

Eu geralmente falo para as pessoas do grupo em que estou trabalhando, que não precisam mudar nada nas suas vidas para seguir o caminho do xamanismo. A única coisa que nós precisamos mudar é nossa percepção. É igual a história de dois pedreiros do século XVI que estavam lascando suas pedras. Perguntado: O que você está fazendo? O primeiro pedreiro respondeu, “eu estou enquadrando esta pedra”. Quando perguntou ao outro pedreiro o que ele estava fazendo, o outro pedreiro disse, “eu estou construindo uma catedral”. Ambos estavam fazendo a mesma coisa, mas as perspectivas deles eram totalmente diferentes.

Para que a pessoa continue a desenvolver esta perspectiva maior dentro do xamanismo, no meu modo de ver é vital que faça seu trabalho do Sul. Este trabalho é feito geralmente dentro de uma caverna, diante de uma fogueira, tendo ao nosso lado galhos recolhidos na natureza que representam nossos apegos e relações do passado. Como indivíduos vivemos à mercê do nosso passado. Só para exemplificar, os traumas sofridos ontem se alimentam hoje de nossos medos. O conhecimento pode ser atingido somente quando dispusermos de força para influenciar o destino, e o seu destino é uma vítima constante do seu passado. O espírito não pode se desenvolver enquanto carnes mortas estão apegadas a ele. Então quando estamos diante da fogueira, colocamos nossa recordação no fogo, uma a uma. Cuidando para que ele não se apague.

Não é necessário que seja feito um rito de passagem igual a este, cada um sabe qual o melhor rito para se livrar do passado. O importante é que este rito seja feito, pois é isto que traz o sagrado para nossa vida. Aprendi que a tarefa do xamã não é procurar significado para o caos, mas trazer o sagrado para nossa realidade ordinária. Isso nos leva a um ato diário de coragem e uma vontade para cometer-mos enganos. Outro fato interessante, é que para desempenhar totalmente o trabalho do Sul, é necessário aplacar o medo. O medo é o reino do Oeste, onde nos defrontamos com a morte. Entretanto, não poderemos exorcizar a morte enquanto não completar-mos o trabalho do Sul. É como um círculo vicioso. O trabalho do Sul é onde exorcizamos o passado que nos persegue, nos prende e nos restringe. O Oeste é onde perdemos o medo ao enfrentar a morte e nos libertamos do futuro desconhecido.

Ao percorrer as montanhas andinas, encontrei uma “Mestra” que me ensinou que todo mundo tem um futuro, mas só algumas pessoas têm um destino. Um destino é algo que nós temos que chamar para si. Fazemos isto seguindo o caminho de uma cosmovisão nativa, na qual nós não fomos expulsos do paraíso, pelo contrário, seguimos sim caminhando com beleza pela terra com dignidade e honra. Este é o Caminho Sagrado do Xamanismo que percorro e que procuro compartilhar com todos aqueles que estão ao meu lado nesta jornada na Boa Estrada Vermelha até chegar a Estrada Azul do Espírito. Este é o Caminho do Guerreiro do Coração.

Wagner Frota