Universo Xamânico

Início » Técnica de Cura dos Navahos

Técnica de Cura dos Navahos

Os métodos de cura dos antigos são rituais vibrantes, com canto e imagem que buscam estabelecer a harmonia do ser humano com as forças naturais à sua volta. É através desta interação que os curandeiros evocam poderes curativos da natureza, em ritos de purificação que incluem orações, cânticos e símbolos cristalizados em pinturas de areia e transmitidos de geração em geração; é uma pena que nos dias de hoje, são poucos os cantos que foram transmitidos para a nova geração. Cada canto é um catálogo de simbolismos. Tudo, inclusive o que é deixado de fora, tem um significado e se encaixa em totalidade do padrão. E cada curandeiro consegue conhecer apenas uma pequena parte desse vasto todo interligado. Existiam há algumas décadas atrás, cerca de 26 cantos diferentes, mas infelizmente, nos dias de hoje nove foram extintos e dez são realizados regularmente. Além desses, existem várias versões mais curtas do Caminho das Bênçãos, dos ritos da caça e guerra (hoje obsoletos), cerimônias breves de oração e ritos menores, dedicados a ocasiões especiais como cerimônia da puberdade das meninas.

A cura dos Navahos utiliza todo o sistema de crenças do paciente, liberando a energia da identificação simbólica para recriar o mundo interior. Os mitos são o alicerce flexível sobre o qual os cantos se assentam. Cada canto tem um mito associado, que descreve sua origem e as aventuras do herói ou heroína que buscam obter dos deuses aquele canto. Os mitos, em si, não têm substância, a menos que participem da ação do canto. Como podemos verificar, os símbolos dos Navahos fazem parte de um complexo mundo de deuses e humanos. Nos rituais Navahos de cura, eles podem transmitir o ethos de uma cultura inteira. Como um andarilho, eu estudei que os símbolos de vida são aqueles que moldam a psique e a cultura e as mantém unidas. Todo comportamento humano originou-se do uso de símbolos. Foi o símbolo que transformou nossos ancestrais antropóides em homens e os tornou humanos. As civilizações foram geradas e perpetuadas pelo uso de símbolos.

Os símbolos de vida fazem de uma cultura o que ela é especificamente. Por meio dos mitos sobre a origem e dos mitos cosmogônicos, constrói-se uma imagem do que o mundo é, de como ele apareceu, e de como espera que ele funcione no futuro. O mito se vale dos “fatos” que tem e vai em frente com sua incumbência de criar interpretações emocional e intuitiva em nós. Os rituais contêm atos sagrados, apropriados à estrutura do mundo construído pelos mitos. A realidade mítica e a ação ritual andam lado a lado, completando-se e complementando-se. Não só o ritual, mas todo o estilo de vida de uma cultura estão constituídos com base nessa visão mítica da realidade. Para os Navahos, a ética que recompensa a deliberação calma, a incansável persistência e a cautela dignas complementam uma imagem da natureza como algo tremendamente poderoso, mecanicamente regular e altamente perigoso. As teorias sobre a doença, os métodos de cura e o controle do mal compõem uma grande parte desse importante contraponto. Esses elementos também devem se ajustar ao ethos em vigor, criado pelos mitos. Para que se desempenhem suas funções, deve necessariamente fazer uso de símbolos, pleno de energia numinosa, fornecido pela cultura.

O efeito de apoio do canto, em última análise, está em sua capacidade de oferecer ao paciente doente um vocabulário com o qual irá compreender a natureza de seu sofrimento e relaciona-lo ao mundo mais amplo. Como um calvário, ou a recitação de como Buda emergiu do palácio de seu pai, ou a representação de Oedipus Tyrannos em outras tradições religiosas, o canto está basicamente voltado para a apresentação de uma imagem específica e concreta de um sofrimento verdadeiramente humano – e, portanto, suportável -, poderosos o suficiente para resistir ao desafio da ausência de sentido emocional suscitada pela existência de uma dor brutal intensa, irremovível.

Os símbolos, todavia, fazem mais do que isso. Não só proporcionam um vocabulário e uma explicação, como também mudam a psique ao converter a energia numa forma diferente, numa forma de poder curar. No ato da cura, os símbolos atuam sobre o paciente que está vulnerável, aberto e pronto a vivenciá-los. Ele se identifica com aquelas na forma das imagens sagradas e da pessoa do curandeiro. Transformam-no e permitem-lhe compartilhar de seu poder de cura. Sob tais circunstâncias, ele não pode não só ser persuadido pela sugestão dos símbolos ou reconciliado com seu destino, mas também ser curado.

Como podemos perceber, a cura acontece como resposta à apresentação de um símbolo, interno ou externo, e pode se dar tanto lenta como imediatamente. É uma experiência, como muitas outras experiências internas, que deve ser conhecida para poder ser devidamente apreciada. Eu tive a oportunidade de participar de um desses círculos de cura durante noites, e pude constatar que a cura é realizada com grandes efeitos no paciente. O paciente vive o acontecimento no centro de sua psique – como diria Jung -, que gradualmente vai abrindo caminho até atingir a camada dos sentimentos e das ações da vida cotidiana, culminando na cura.

Essas manifestações simbólicas, quando vêm acompanhadas de uma forte certeza interna, podem exercer uma influência vitalícia e conduzir o indivíduo por caminhos difíceis que, do contrário, ele talvez jamais se aventuraria a explorar. Isso é uma verdadeira cura? Presumo que sim, e é isso que um paciente Navaho sente quando as condições são corretas e quando ele é confrontado de modo vívido e intenso com um símbolo sagrado, pleno de significado e imbuído de força numinosa. Essa é, em si, uma vivência completa e suficiente como técnica de cura.

Embora a cura simbólica não seja científica, é muito mais do que fantasias vagas e exóticas agrupadas num amontoado sem sentido. A cura simbólica tem uma estrutura estabelecida e obedece a certas regras e procedimentos bem definidos, como pude observar in loco. Há determinados estágios por meio dos quais avança muito, embora não sejam estritamente cronológicos ou mutuamente excludentes; em geral fundem-se num dado momento e mais de um estágio pode estar em andamento. Em certas culturas, alguns desses estágios podem ser breves ou quase completamente omitidos. Mas, normalmente, evoluem segundo uma ordem determinada, em que cada um flui para o seguinte obedecendo a uma transição necessária. O esboço que faço a seguir irá oferecer para vocês um parâmetro conceitual para se entender e comparar a cura simbólica em várias culturas.

Primeiro estágio: Preparação ou Purificação. Antes dos símbolos de vida serem apresentados ou utilizados, o curandeiro ou xamã, assim como o paciente, submetem-se a rituais de purificação a fim de se preparar para a ocasião. Em geral o aposento, ou terreno cerimonial (hogan), e os espectadores são igualmente purificados. A purificação é alcançada lavando-se, suando, tomando vomitórios, usando roupas especiais e abstendo-se de certas atividades diárias, tais como comer determinados alimentos, ter atividade sexual, ou executar alguns tipos de trabalho.

Segundo estágio: Apresentação ou evocação. Depois da purificação, as imagens simbólicas pertinentes são feitas e apresentadas de forma visível ou audível. O paladar, o olfato e o tato podem ter um papel importante neste estágio. Os símbolos devem ser apresentados de modo vívido e dramático, como por meio de ícones, estátuas, bastões cerimoniais, pinturas com areia ou entoação rítmica de cantos e preces. A fumigação com incenso especial e a ingestão de certas ervas e alimento são possíveis. Nesse sentido, a presença simbólica torna-se real. Assim que são evocados, os poderes sobrenaturais ou seres divinos investem os símbolos, o curandeiro e o paciente com sua presença numinosa. Esta preparado o caminho para a ação culminante.

Terceiro estágio: Identificação, o ponto alto da cerimônia. O Curandeiro ou xamã e o paciente, e as vezes mesmo os espectadores, são identificados ou intimamente investidos com os poderes evocados e coisificados. O curandeiro pode tornar-se simbolicamente o poder sobrenatural e, ao mesmo tempo, incorporar em si mesmo a parte maligna ou ruim do paciente causadora da doença. O curandeiro é exaltado e tornar-se poderosos. Se a cerimônia, nesse momento sofre algum contratempo sério, tanto o curandeiro como o paciente correm risco de sofrer danos causados pelo poder que não está mais sob o controle do ritual.

Quarto estágio: Transformação. O curador usa o poder extraordinário que agora tem aos olhos do paciente e dos espectadores para obter os resultados desejados. Vence a batalha, extermina a doença, expulsa o mal, contra-ataca o feitiço ou recupera a alma. Simbolicamente transformado, o paciente acredita que a verdadeira recuperação da saúde e da harmonia irá em breve acontecer.

Quinto estágio: Libertação. Finalmente, devem existir rituais para o paciente, o curandeiro e a audiência fiquem liberados da poderosa força simbólica que mobilizaram, retornando, então ao estado normal. Depois de ter vivenciado o poder transformador do símbolo, o paciente deve afastar-se dele. Isso pode ser obtido por meio de cantos e preces especiais ou por meio de restrições contra o sono ou banho, até que certo intervalo de tempo tenha passado. Isso encerra, o ciclo da cura simbólica.

Cenas similares devem ocorrer em outras culturas. O conteúdo pode ser diferente, mas a estrutura simbólica é a mesma. Por meio da apresentação desses símbolos, o homem é posto em contato com seus recursos interiores. Se as imagens de cura forem fortes o suficiente, se o xamã for habilidoso e inabalável em seus propósitos, e se o envolvimento do paciente for profundo e urgente, então pode ter a confiança de que a cura irá ocorrer. Alguns podem não acreditar na verdadeira cura através dos símbolos, mas ela é realizada, nem que seja tipo um efeito placebo que muitos ainda teimam em não reconhecer. Nos dias de hoje, vemos que médicos formados nos estados Americanos, solicitam muitas vezes o auxílio de xamãs para serem feitas curas que eles não conseguiram realizar com toda sua tecnologia.

Wagner Frota